Pirei no Conto

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quarta-feira, 11 de março de 2015

A Flor do Cerrado


             Veridiana caminhava na vereda poeirenta. A saia amarela esvoaçava ao vento, como chamas na fogueira, o coração ardia e insuflava de luz o sorriso luminoso de dentes tortos.  O cabelo comprido, negro e crespo, balançava com os passos grandes, apoiados em pés descalços e sujos. Os olhos castanhos, circundados por sobrancelha escura e espessa, procuravam à frente o rio onde lavaria as roupas, presas em uma trouxa debaixo do braço, enquanto as mulheres à beira do rio exclamavam, a voz baixa entre si:
             - Lá vem a quenga.
             E se afastavam para perto de outra pedra, deixando as mãos grandes e fortes de Veridiana espalharem as roupas sobre a areia do rio, sozinha. Bicho selvagem.
             Os tropeiros atravessavam o rio no lombo dos jegues, com suas histórias de mortes e de sertões desconhecidos, as roupas rotas e avermelhadas da terra do chão dos Goiás. À frente, o mais destemido: o Caolho. Firme, chamavam-no Caolho Gelado, pois era como comandava. Sua voz grave, baixa, inalterada, enviava os homens para a morte matada, a morte do sangue, ao embrenho daqueles sertões que riscavam as pernas e os braços com os espinhos, enquanto carregavam nas mãos, oleosas de suor, ou a fortuna de diamantes e esmeraldas, ou o ganho de novos escravos índios para as estâncias no caminho.
               Caolho desceu do jegue, e aproximou-se de Veridiana.
               - Mulher, que rancho é esse?
               Veridiana não levantou.
               - Não tem nome, não senhor. Na falta de nome, chamam rancho da Maria Farinha, que bem é dona do lugar.
                - Ousadia! Levanta, mulher!
                Veridiana levantou-se, a camisa avermelhada descobriu um ombro cor de jambo.
                - É escrava?
                - Sou sim, senhor. Trabalho na casa de Maria Farinha.
               Os tropeiros se riram.
               - Eu calo essa macheza de vosmecês...
               Calarem-se, cabeça baixa. Caolho segurou-a pelo queixo.
               - Vosmecê saiba que não quero mulher... Mulher desaforada...
               Silêncio. Caolho matava sem dar sinal.
               Olhou fundo nos olhos de Veridiana. O corpo de Veridiana quente debaixo do sol. Sentiu sua mão, sempre fria, molhar-se. Tirou-a logo, como se encostasse em brasa.
              - Vosmecê sabe quem é Maria Farinha? O que ela faz?
             - Sei sim, sinhô.
             O olhar de Caolho fundo no olho de Veridiana, pedaço afiado de gelo que penetra lento em carne suave. Veridiana teve medo. Mas sentiu no coração apressado a vida aventurosa de um homem macho, do arbusto de espinho que nasce na terra mais seca.
             - Desabestada.
            Caolho sentiu a pele fria suar – virou-se rápido para os homens.
            - Vamo logo! Que quero ter mais com aquela velha.
             E subiram o chão de terra até o rancho, os casebres mais acima.
            “É louca”, diriam as mulheres mais tarde.
            A lua entrava pela janela do quarto de Veridiana. Filha de um tropeiro com uma índia, fora vendida nova pelo pai para Maria Farinha. A virgindade trocada por um porco. Desde então, à noite fechava os olhos, no coração já não sentia nada.  Ao contrário da luz do dia, que a alimentava como água na raiz de uma planta. Maria Farinha a tratava bem, dava vestido, vistoso, para fazer saliva na boca de qualquer homem que viesse das Gerais.
                 Preparava-se à luz das velas. Logo saía para fazer a graça dos tropeiros.
                Ouviu alguém batendo à porta. Era Sinhá Farinha apressando.
                - Estou pronta, Sinhá!
                Mas a porta abriu-se, Maria Sinhá ao fundo. À frente dela, o Caolho em pessoa.
Caolho fechou a porta. Naquele homem, feito de gelo, no arbusto espinhoso e endurecido do coração, a primeira chuva começava a cair na terra, e o arbusto amolecia sob o peso das águas, brotando o verde de seus galhos enrijecidos.
              Caolho se punha sobre Veridiana, sentia a própria pele gelada molhar-se. O corpo e o coração de Veridiana avermelhavam-se como uma fogueira, os lençóis queimando e iluminando o quarto. O corpo rijo de Caolho desmanchava-se sobre o de Veridiana, primeiro um riacho, depois um rio, e então uma tempestade. O vento forte fazia bater a janela, e a luz dos trovões inundava o quarto.
                Por muito tempo, no rancho de Maria Farinha, comentava-se a história do incêndio no quarto de Veridiana, sob a tempestade mais forte da região. A casa de Maria Farinha fora destruída, e sob as cinzas nunca foram encontrados os corpos dos dois amantes.
                 Alguns diziam que Caolho se vingara de uma dívida que Maria Farinha tinha com ele, botando fogo no quarto e fugindo na tempestade com a escrava que mais dava lucro a ela.
                Outros diziam que o fogo de Veridiana derretera Caolho Gelado, formando a tempestade, e fazendo a casa vir abaixo sob as chamas. Pois sobre os escombros, na seca mais inclemente, encontraram não os arbustos espinhosos e sem folhas de praxe, mas uma flor do cerrado, vermelha e delicada, no chão de pó vermelho dos Goiás.

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