Pirei no Conto

Pirei no Conto

sábado, 22 de agosto de 2015

O Amor de Narciso



Carlos pôs as lentes de contato, e sentiu que por fim chegara à década de 2030. Eram o novo modelo Megalux Delta-49, as primeiras com acesso à internet e GPS, e nelas era possível ver as imagens virtualmente à sua frente.
Na ótica, pediram que Carlos testasse as lentes. Ele piscou o olho direito três vezes, e um menu de opções abriu-se à sua frente. Uma mensagem para os amigos? Era só apertar a tela virtual com um dos dedos, para abrir-se um teclado também virtual.
Escreveu ao seu namorado, William: “Comprei as lentes novas! Partiu cinema?” E ele logo respondeu com um “blz”. Carlos achou meio seca aquela resposta, mas tudo bem.
Experimentou ver um videoclip novo da sua banda favorita pelas lentes. Via as imagens, mas esqueceu-se do som. Pediu os fones de ouvido à vendedora. Eram minúsculos, sem fios, e se encaixavam perfeitamente ao canal auditivo. Além disso, eram quase imperceptíveis.
A vendedora perguntou a ele se pagaria a débito ou a crédito. Ficou bastante impressionado ao conseguir ouvir a música e ao mesmo tempo a voz da vendedora perfeitamente. Mesmo assim fechou o vídeo com um movimento das mãos.
A vendedora explicou que os fones davam ao usuário duas opções. A primeira era escutar exclusivamente o conteúdo emitido por eles. Nesse caso, qualquer barulho externo era abafado. A outra opção era ouvir ao mesmo tempo os fones e os sons do exterior. Isso era feito de tal forma que um não entrava em conflito com o outro, e a música ou voz dos fones era ouvida como som ambiente.
Muito satisfeito, por fim Carlos digitou algumas teclas de seu relógio-smartphone, e fez a operação de crédito diretamente ao anel-celular da vendedora.
Mais tarde, na noite daquela quinta-feira, veio correndo para encontrar-se com William no cinema. Já estava meia-hora  atrasado. Wiliam deu um pequeno selinho sem graça nos lábios de Carlos. Carlos quis abraçá-lo, mas ele se afastou.
Carlos perguntou se estava tudo bem, mas William somente respondeu com um “sim”, erguendo os ombros.
Entraram no amplo corredor do cinema, com várias salas de cada lado. Não havia filas ou bilheteria, pois os lugares marcados eram comprados antecipadamente por smartphone, no mesmo dia. Assim que chegaram à sala certa, um sistema biométrico identificou-os à distância por uma câmera, abrindo automaticamente a porta.
As poltronas marcadas abriram-se imediatamente assim que eles chegaram, por um dispositivo biométrico do mesmo tipo. Se um espertinho tentasse sentar em um lugar diferente do seu, a poltrona simplesmente permanecia fechada.
O filme em 4D começou. Era uma novidade absoluta. Através de um indutor de sensações, além das três dimensões espaciais era oferecida mais uma, a tátil. Era possível sentir, sem ultrapassar o limite do desconforto, vento, chuva, frio ou calor, a luz do sol na pele, e até mesmo uma mão passando suave no rosto.
Era uma maneira dos cinemas competirem com as televisões holográficas, agora onipresentes. Opção perfeita para aquele documentário sobre a chegada recente do ser humano a Marte.
Carlos comentou baixinho a William que seu pai tinha visto aquele filme há poucas semanas. E que ficou procurando onde ficavam aqueles óculos 3D de antigamente, acredita? William deu uma risadinha sem graça. Que estranho. Normalmente William cairia na gargalhada, sarcástico que era.
Após o cinema, durante o café, finalmente William abriu o jogo. Não dava mais.
- É pelo atraso? – Carlos perguntou nervoso.
- Não, não é só por isso. Eu não sei responder, Carlinhos. Teve algo que passou... Eu não sei explicar. Você vive dizendo que vai melhorar. Eu acreditei. Mas parece que sempre falta algo.
- Falta algo pra quê?
- Pra você ser a pessoa que eu sempre quis.
- Ah, tá certo, senhor perfeitinho. Então eu não consigo preencher todos os requisitos para ser o seu namorado?
- Sim. – respondeu William laconicamente.
- Ah é, mesmo? E o que falta pra eu ser esse namorado perfeito?
- Um pouco de mistério, eu acho. Você é previsível demais, Carlos. E carente.
- Eu, carente? Quem é que tava fazendo beicinho na porta do cinema agora mesmo?
- Isso não é carência. É quebra de expectativa. Na verdade...  nem isso. Eu já sabia que você ia atrasar. Sabe o que é? Você não me surpreende mais, cara. Lamento.
- Você lamenta? E eu? Sabe, eu também lamento. Você não sabe o que eu já tive de aturar com você. Esse silêncio, o tempo todo medindo tudo... Esse jeito contido sempre. Nunca sei direito o que se passa na sua cabeça, você nunca me diz nada! Só fica com esse olhar, todas as vezes.
- Definitivamente a gente não combina. Me desculpe.
- “Me desculpe”... Você ganhou, cara! Eu não valho nada, né?
- Eu não disse isso. Eu gosto de você.
- Gosta de mim? Fica aí, com esse ar de perfeição, essa coisa toda aristocrática, esse ar controlado! Agora quem tá de saco cheio sou eu!
- Ok, Carlos. Eu vou me retirar. Com licença.
- Vai, pode ir! Vai, como se não tivesse sangue nas veias! Sabe o que você é? Você é um falso, cara!
Enquanto isso, William continuou caminhando calmamente, sem olhar para trás, até a saída do shopping center.
Assim que chegou em casa, Carlos caiu em lágrimas. Ele amava aquele desgraçado.
Escolheu um filme novo na TV holográfica, e ficou assistindo até tarde tomando sua cerveja chinesa favorita, a Mao.
Já era de noite quando viu uma mensagem na TV. Era o William lá embaixo, querendo subir.
Carlos ficou pasmo com aquilo. O que ele queria falar com ele?
Mas Carlos botou a cabeça no lugar. Não haviam conversado quase nada no shopping. E era a oportunidade de Carlos botar os pingos nos i’s.
Decidiu deixar o pilantra subir. Apertou um botão no menu holográfico, e a portaria abriu lá embaixo.
Quando abriu a porta, William trazia em uma das mãos um pequeno ramo de gérberas, a flor favorita de Carlos. Atrás do ramalhete, William oferecia aquele olhar e sorriso de canto de boca magnéticos.
Sem dizerem nada, abraçaram-se.  E toda a raiva de Carlos foi pelo ralo. Aquele maldito... Não conseguia dizer “não” para William.
Uma coisa leva à outra, e acabaram dormindo juntos.
Inesquecível. Foi a melhor noite que já tiveram.
Já de manhã, quando Carlos acordou, sentiu a cama vazia. Filho da mãe. Sabia que William era frio. Mas não àquele ponto. Nem se despediu. Mas por quê?
Carlos foi escovar os dentes, ainda confuso com tudo aquilo.
Mas quando chegou à sala, William estava sentado à mesa, já vestido. Havia preparado um gostoso café da manhã para os dois. E Carlos suspirou aliviado.
Carlos tocou a mão de William com ternura, que devolveu o gesto agarrando-a forte.
Conversaram como nunca haviam conversado antes. William sempre manteria aquele ar misterioso, mas a neblina que o envolvia havia desaparecido. E era mais aberto e sensível do que Carlos imaginava. Realmente nunca conhecemos completamente aquele que está ao nosso lado. Não conhecia essa faceta de seu namorado.
Conversaram tanto... E quando deram por si, já eram oito horas da manhã.
- Eu preciso ir. – apressou-se William.
- Mas você?... Atrasado pro trabalho? Você nunca está atrasado!
- Tive uma boa razão. – disse com segurança William, dando um leve beijo nos lábios de Carlos.
William levantou-se, e Carlos despediu-se dele ainda de cueca, junto à porta.
Logo que trancou a fechadura, Carlos também começou a correr. Entrava no trabalho às dez.
O dia passou devagar. Carlos só pensava em William, e naquela noite incrível. Trocaram algumas mensagens durante o dia, e combinaram de encontrarem-se no dia seguinte, que já era sábado.
Naquela noite de sexta, alguns colegas de Carlos chamaram-no para um happy-hour em um bar novo, com a última tendência, uma temática punk-indie de bandas coreanas.
Enquanto os outros tomavam algumas cervejas chinesas Mao long-neck (eram a última moda), Carlos pediu um drinque, um neo-cosmopolitan. Gostava de ver a bebida mudando de cor a cada vez que tomava um gole, do violeta até um intenso vermelho carmim.
Quando já estavam na segunda rodada, Carlos pôde ver, a poucas mesas de onde se encontravam, William conversando com outro rapaz. Estavam somente os dois.
Carlos, já um pouco alto pela bebida, ficou observando-os, o coração querendo sair pela boca. O medo misturava-se ao ciúme. Por que William não falara nada sobre aquilo?
William percebeu o olhar. E gélido, virou-se para o rapaz e conversou algo em seu ouvido. William apertou um botão na mesa, e uma tela subiu de um nicho de dentro dela. Ele tirou seu smartphone do bolso, e pagou a conta.  Os dois se levantaram.
O bar estava bastante lotado, de forma que William e o rapaz foram obrigados a passar ao lado da mesa de Carlos. Não olharam para ele, nem falaram nada. E saíram.
Após retornar do bar, Carlos andava de um lado para outro no apartamento, pensando no que acabara de presenciar. De repente, começou a sentir uma coceira nos olhos.
As lentes!
Esquecera-se de retirá-las desde o dia anterior. E elas estavam cobrando o preço. Rapidamente foi ao banheiro, onde tirou as lentes e os fones, e jogou-os juntos no frasco com solução antimicrobiana. Em uma hora já estariam perfeitamente esterilizados.
Não gostava muito do indutor de sono, mas àquela altura... Sempre tivera um pouco de insônia, e apesar de não gostar dos efeitos colaterais do indutor - a boca seca e um certo mal-estar - não pretendia encarar o sábado inteiro sonolento, sem curtir nada.
No dia seguinte, no sábado, aquele idiota iria ver. Uma nova boate iria abrir aquela noite com uma grande festa, um lugar perfeito para Carlos descolar alguém e tentar esquecer o “senhor pedra de gelo”.
Que cara de pau! Há quanto tempo será que aqueles dois já estavam se encontrando? William estava fazendo aquilo debaixo do nariz de Carlos, o tempo todo? E a noite que passara junto com William? Por que William o havia procurado? Era uma forma de humilhá-lo ainda mais?
Mas Carlos não conseguia mais pensar naquilo. O indutor de sono começou a fazer seu efeito, e os pensamentos de Carlos misturavam-se confusamente, terminando por fim em uma escuridão imediata, numa espécie de blecaute.
De repente, Carlos abriu os olhos. O sol já entrava pela janela. Apesar do corpo descansado, sentiu a boca seca, e um enjoo no estômago.
Correu até o banheiro, onde um jato de vômito saiu de sua boca assim que abriu a tampa do vaso.
Tomou um banho quente, e saiu de lá renovado, sem sentir mais nenhum enjoo. Apesar do efeito inicial nefasto após acordar, até que aquele aparelho tinha lá suas qualidades.
Por falar em aparelho, lembrou-se das lentes. Tirou-as da solução antimicrobiana, e colocou-as nos olhos.
Assim que recolocou também os fones, o menu virtual abriu-se à sua frente. Tinha uma nova mensagem de vídeo gravada.
Era William.
“Oi, amor. Fiquei envergonhado ontem. Por isso não falei contigo. Devia ter contado do meu amigo que chegou a Brasília, mas foi tudo tão de última hora... Queria apresentar ele depois para você. Vamos nos encontrar?”
Após o fim da mensagem, Carlos fez uma videochamada imediatamente, pelas lentes mesmo. William atendeu.
- Oi, amor. – disse William, despreocupadamente.
- Sem essa. O que é que tá rolando?
- Rolando? Nada. Eu tô passeando com o meu amigo. Ele gostaria muito de te conhecer.
O rapaz do dia anterior entrou no campo de visão virtual de Carlos.
- Esse é o Valmir. Diga “oi” pro Carlos.
- Oi, tudo bom, cara? O William só me tem falado coisas boas de você.
- Oi. – grunhiu Carlos.
- Então. – continuou William – O Valmir vai agora visitar os pais dele. Vamos nos encontrar para almoçar?
- Tá bom. Mas eu quero entender melhor essa história.
- Hum... Ciúmes, é?
- O que você acha?
- Te amo, bobo. – e William deu aquele sorrisinho sexy de lado.
- Também te amo, boboca.
Carlos fez um movimento com as mãos, e encerrou a chamada. O William ia ter que explicar direitinho aquilo.
Mas quando se encontraram no bar, o abraço quente e apertado de William desfez qualquer dúvida na cabeça de Carlos.
O bar estava vazio, era cedo ainda. Os garçons-robôs trouxeram duas cervejas Mao para a mesa deles. Brindaram. E passaram a tarde conversando, comendo e bebendo animadamente.
Mas quando Carlos viu a conta na tela da mesa, percebeu que só haviam cobrado metade do que haviam consumido, incluindo o almoço. Carlos mostrou para William, que deu apenas uma piscadinha safada. Carlos pagou, e William puxou-o pelo braço para saírem do restaurante, antes que alguém notasse a diferença.
O prédio de Carlos era ali perto, e foram até lá caminhando. William continuava rindo do episódio. Era o sarcástico de sempre. Ele era todo perfeitinho, mas também sabia ser moleque quando queria. É, William não havia mudado nada.
O resto da tarde foi aproveitado entre lençóis. William estava mais inspirado do que nunca. E após um cochilo, tomaram banho juntos. A noite prometia.
Foram à inauguração da boate nova. Muita gente bonita. Naquela época, já mais ninguém rotulava as pessoas como “heteros” e “gays”, e alguns casais, com várias combinações entre os sexos, podiam ser vistos na fila.
William e Carlos estavam dançando bem soltinhos, de vez quando rolava um beijo.
- Baby, acho que vou no banheiro. – disse William uma hora.
- Mas, gato, a gente nem bebeu ainda.
- Esqueci de fazer xixi na sua casa. Tô com a bexiga estourando. Volto logo. – e acrescentou – por que você não aproveita e pega uma cerveja pra gente?
Dando de ombros, Carlos foi até o balcão. Chegando lá, de repente,  com o canto do olho, viu algo que o surpreendeu.
Não era o William agarrado com aquele tal de Valmir? Num beijo daqueles!
Carlos foi na mesma hora na direção dos dois, e separou-os com violência.
- Que pouca vergonha é essa?
- Ih, que é, Carlos? Tá louco? – respondeu William.
- Você é um cara-dura, mesmo, né? Caí direitinho na tua conversa. Escroto!
- Ô, mais respeito com ele! – reclamou o tal Valmir.
- Que é, ô, Valmir? Fica na tua!
- Que Valmir, o caralho! Pirou, cara? Eu me chamo Gustavo!
- Carlos, que decadência. Não esperava isso de você.
- Cala a boca, William!
- Gustavo, vambora?
E os dois se afastaram, deixando Carlos enfurecido.
Ele imediatamente saiu da boate. Em casa, tirou as lentes e os fones. Tirou sua  roupa, e deitou-se. Não sem antes, com certa relutância, ligar novamente o indutor de sono. E a raiva deu lugar às lágrimas. Que por fim, deram lugar ao sono. E ao blecaute típico do indutor.
No domingo, Carlos passou o dia deitado no sofá, assistindo a seus programas favoritos, tentando distrair-se. Mas entre um programa e outro, a visão de William vinha intermitente em sua mente. Do beijo de William naquele estranho. O mesmo beijo que devia pertencer a ele, Carlos.
Na segunda, Carlos percebeu que havia dormido no sofá, à luz da TV ainda ligada. E apressou-se: tinha consulta com seu oftalmologista, para examinar as lentes. Colocou as lentes e os fones, e correu até a clínica.
No consultório, o médico fez alguns exames, e retirou as lentes para olhar sob um microscópio. Parecia preocupado.
- Aconteceu algo, doutor?
- Me diga... Você andou usando essas lentes antes de vir para cá?
- Hum... Pôxa, doutor, eu sei que o senhor disse para não usar antes de vir ver o senhor...
- Eu te disse que seria necessário fazer alguns ajustes na sua lente antes de você usar. Mas agora já foi. Viu algo anormal esses dias, enquanto usava as lentes?
- Não.
- Nada mesmo? Nada desagradável? Algum acontecimento inesperado? - o tom do médico era de preocupação.
- O máximo que me aconteceu foi pegar meu namorado com outro cara. Mas isso não tem nada a ver com as lentes.
Mas o doutor pareceu ainda mais interessado.
- Como isso aconteceu?
- Bom, eu fui com ele a uma boate. Ele me disse que ia ao banheiro, mas quando fui pegar umas cervejas, dei de cara com ele beijando outro. Bem na minha frente. Mas o que isso tem a ver...
- Hum... Que roupa ele estava usando?
- Bom, ele estava... Espera. Quando ele saiu comigo ele estava com uma camisa branca e uma calça jeans, e um tênis amarelo.
- E?
- Que estranho! Eu tava com tanta raiva... Mas quando eu peguei ele com o outro cara, ele estava com uma jaqueta escura, e uma camisa vermelha. E acho que tava usando um coturno preto.
- Nada anormal, né?... – ironizou o médico.
- Não sei... Que esquisito. Na hora não reparei. Mas agora...
- Quero te mostrar uma coisa.
E o oftalmologista ligou uma imagem holográfica à frente de Carlos.
A imagem mostrava o circuito eletro-quântico dentro da lente. O doutor começou a fazer um pequeno zoom, mostrando cada vez mais detalhes da complexidade daquela maravilha nanométrica.
Por fim, estacionou a imagem. E apontou para Carlos uma pequena parte avermelhada do circuito.
- Está vendo ali?
- Sim. O que é?
- Uma pequena interferência no projeto da sua lente. Na parte quântica que recepciona suas ondas cerebrais.
- Ondas cerebrais? Eu pensei que a lente funcionasse com o movimento das mãos e dos olhos...
- Não exatamente. Só o movimento não daria a precisão necessária. Na verdade, as lentes funcionam com a sua intenção de mover as mãos. Elas leem as ondas cerebrais referentes a esses movimentos. Por isso funcionam tão bem.
- E o que tem a ver as roupas do meu namorado com isso?
- Será que você estava mesmo com o seu namorado?
Carlos sentiu um embrulho no estômago. O que ele queria dizer com aquilo?
- Claro que sim!
- Escuta, esse seu “namorado”, como ele tem agido com você?
- Bom, ele parece um louco. Uma hora ele diz que me ama, outra hora briga comigo.
- E desde quando ele tem agido assim com você?
- Desde que fomos ao cinema 4D.
- Eu já imaginava algo assim. Você por acaso leu a bula que veio junto com a lente?
- Bula? A vendedora não me falou de nenhuma bula.
- A vendedora não sabe como a lente funciona. Por isso pedi para você não usar a lente antes de vir aqui. Eu teria alertado. Vou mostrar pra você.
A imagem do circuito desapareceu, dando lugar à típica tela virtual da lente, com um menu de opções. Em uma das opções, estava escrito “bula”.
O doutor escolheu aquela opção, e imediatamente um texto apareceu. A tela rolou para baixo, enquanto aparecia a descrição da lente, contraindicações... Por fim, uma parte do texto descrevia:
“Não deve ser usado por pessoas em tratamento de Alzheimer, esquizofrenia, comportamento borderliner ou esquizoide. Não usar em salas de cinema 4D ou concomitantemente com indutores de sono ou emoções.”
- Você por acaso usou um indutor de sono estes dias, usando as lentes?
- Não... Só estive no cinema 4D. Por quê?
- Você deu sorte. Esses indutores de sensação, de sono, de emoções... Uma bela porcaria! Ninguém devia mexer com as ondas elétricas naturais do cérebro.
- Mas o que está acontecendo?
- Carlos, você está vendo o que seu cérebro quer que você veja! Às vezes fantasiamos... Dormimos acordados. Criando ilusões em cima daquilo que mais desejamos. Só que as ondas neurais criadas pelo seu cérebro quando você vê algo e quando você apenas imagina algo são idênticas! Obviamente, o circuito das lentes é preparado para identificar apenas as ondas neurais referentes aos seus movimentos. Dessa forma, você tem controle completo sobre elas. Mas um indutor de ondas pode sobrecarregar o circuito.
- Mas eu toquei ele! Era real!
- Se você realmente acredita que algo é real... Seu cérebro vai fazer de tudo para confirmar isso, criando ilusões de tato, cheiro, paladar...
O doutor apagou a imagem holográfica, e retirou as lentes do microscópio, colocando-as em um frasco com solução, e deixando-a na mão de Carlos.
- Já consertei o circuito com problema. Só não use de novo quando indutores estiverem por perto.
- Muito obrigado, doutor.
- Que bom que você só usou isso no cinema. Se tivesse usado as lentes com um indutor de sono, estaria vendo até agora todas as imagens de seus sonhos... E estaria irremediavelmente psicótico.
Enquanto se despediam, o médico deu mais um conselho a Carlos:
- Eu, se fosse você, procurava esse seu namorado esses dias.
- Por quê?
- Para saber quem é o seu namorado verdadeiro. O que diz que te ama, ou o que está brigado com você.
Na saída do prédio da clínica, Carlos viu William saindo apressado do mesmo edifício. Será que ele havia comprado as lentes também? Mas não teve coragem de chamá-lo. Não queria saber a verdade, se William ainda o desejava ou não.
De lá, Carlos foi para o trabalho. Tentou concentrar-se no serviço. Para que não ficasse tentado a ligar para William, desligou seu relógio-smartphone, e colocou-o no bolso. Não tinha coragem de ligar. Será que tudo de bom que havia acontecido entre ele e William era apenas ilusão?
 Por isso, quando chegou em casa, Carlos sentiu-se aliviado quando viu que havia um recado de William na TV holográfica.
“Carlos, eu tentei te ligar o dia todo. Por que você não me atende? Aconteceu alguma coisa?”
Imediatamente Carlos ligou de volta para William, já feliz. Então ele realmente o amava.
William atendeu.
- Oi, Carlos! Eu tentei te ligar. Aconteceu alguma coisa com o seu smartphone?
- Não... Apenas eu precisava me concentrar no serviço, só isso. Mas agora está tudo bem.
- Bom, o que aconteceu na boate aquele dia? Pensei que a gente já havia conversado...
- Me desculpa. Eu... eu passei mal aquele dia. Não consegui te avisar.
 - Mas está tudo bem agora?
- Tá! Tá tudo ótimo! Quando a gente pode se ver outra vez?
- Como assim? Carlos, a gente não namora mais, esqueceu?
Carlos sentiu que suas mãos começavam a suar frio.
- Eu não entendi porque você agiu daquela maneira na boate – continuou William – Sei que a gente acabou de se separar, mas o Gustavo... A gente tá só se conhecendo. Não está acontecendo nada mais. Rolou aquele dia... Mas a gente nem tá mais junto.
- Sei... – Carlos não sabia o que dizer.
- Eu ainda me preocupo com você, Carlos.
- Não, não se preocupe. Está tudo bem.
- Mesmo?
- Tá, tá tudo ótimo.
E Carlos desligou a TV.
Durante vários dias, Carlos permaneceu pensando sobre tudo aquilo. Sentia-se derrotado. Não só pelo fora de William, mas por não imaginar o quanto ainda estava ligado a ele. William fora inteligente, continuara sua vida. Mas Carlos não. Era um defeito daquelas lentes, mas o defeito maior estava dentro dele. Por que se entregara tanto assim?
Carlos começou a sair novamente, e a evitar William. Cada vez que o via, sentia a respiração ofegante, o coração batendo mais forte, e uma vontade imensa de aproximar-se. 
Ao mesmo tempo, via William procurá-lo. Quando William o encontrava nas boates, olhava para ele convidativo, com aquele mesmo sorriso, misturado a uma certa tristeza. William era orgulhoso demais para aproximar-se. Como sempre, esperava que Carlos desse o primeiro passo.
Mas não era o que Carlos queria. William podia não saber de nada, mas Carlos sentia-se humilhado demais pela estranha experiência por que passara, e tudo que queria era livrar-se daquele amor que não o deixava mais dormir.
Pois com medo do que falara a ele o oftalmologista, Carlos começou a evitar o indutor de sono, mesmo sem usar as lentes. Ainda que isso lhe custasse um dia sonolento no trabalho.
A última vez que viu William, ele estava saindo de um cinema 4D. Sozinho.
Um dia, enquanto estava com alguns amigos em um restaurante, Carlos viu William sentado em uma mesa, somente ele, e mais ninguém.
William parecia conversar com alguém, e sorria. Carlos, tentando entender o que acontecia, pediu a um amigo na mesa para passar perto de William, e tentar ouvir alguma coisa.
- Mas você não queria esquecer esse cara?
- Eu quero. Mas me faz esse favor? Só te peço isso.
Então o amigo de Carlos passou perto de William, indo em direção ao banheiro. Estacionou alguns segundos ao lado de William, sem que esse o observasse, e depois seguiu seu caminho.
Na volta, conversou com Carlos.
- O que ele está dizendo?
- Acho que o William pirou de vez. Ele está dizendo seu nome.
- Como assim? O que ele disse exatamente?
- Algo assim: “Que bom que você está aqui do meu lado, Carlos. Você finalmente era tudo aquilo que eu esperava.”
Carlos ficou mudo com a resposta. Voltou a conversar com todos na mesa, tentando disfarçar sua angústia. Mas em um determinado momento olhou para William. E viu nos olhos deles uma ternura e um amor profundo, mirando para o vazio.
Em casa, já alto pelo álcool, Carlos olhou-se no espelho do banheiro.
Lembrou-se de William saindo do edifício da clínica de oftalmologia. Sabia que ele também queria comprar aquelas lentes. E vira ele sair de um daqueles cinemas 4D. Aquele comportamento estranho de William no bar... Uma coisa levava a outra.
 Sentia-se mais uma vez derrotado. Como Kasparov após perder no xadrez para o Deep Blue.* Fora derrotado por uma máquina, por uma ilusão eletrônica.
Os pensamentos se repetiam na cabeça de Carlos:
“Você vive dizendo que vai melhorar. Eu acreditei. Mas parece que sempre falta algo.”
“Falta algo pra quê?”
“ Pra você ser a pessoa que eu sempre quis.”
Carlos abriu o armário do banheiro. E retirou dali o frasco com as lentes e os fones. Colocou-os nos olhos e ouvidos.
Foi ver um filme 4D, de madrugada. O mesmo que vira naquele dia com William.
E de volta pra sua casa, ainda com as lentes e os fones, ligou o indutor de sono, e deitou-se na cama.
De repente, sentiu alguém passar carinhosamente a mão pelos seus cabelos.
- Carlos, meu amor...
Virou-se na cama, e viu William deitado ao seu lado. Lindo, perfeito, como sempre o imaginara.
E beijaram-se apaixonados, como se fosse a primeira vez. PNC!


*Em maio de 1997, Garry Kasparov, então o maior campeão de xadrez do mundo, natural do Azerbaijão, foi derrotado em um confronto de seis partidas pelo computador Deep Blue, produzido pela IBM. Foi a primeira vez na história que uma máquina derrotou um ser humano em um confronto de xadrez. (Nota do Autor)


"Sai pra lá, amor bandido! Será que eu namoraria alguém que está só na minha imaginação? Sei não..."


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